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sábado, 13 de agosto de 2011

Kelly e o filho do algoz


Kelly Slater e Andy Irons: vidas cruzadas. Foto: Aleko Stergiou.
 
Os dias têm sido difíceis. Um idiota metralha a paz da Noruega, bolsas entram no abismo, Obama erra no discurso, ministros e secretários se perdem na corrupção, o chefe rejeitado é suspeito de matar a subordinada gatinha, idiotas sequestram um ônibus cheio de trabalhadores no Rio. Nada mais justo que buscar um fôlego rápido na alienação do esporte.

Nem na seara de quem venera o espírito de Duke as coisas iam bem: a tropa brasileira ficou pelo meio do caminho em Huntington Beach. Exceção feita a Felipe Toledo, vencedor da Júnior. Era pouco para ano de redenção de nossa bandeira com a mensagem positivista.

Afinal, Miguel e cia. tinham atropelado em Trestles, numa onda teoricamente melhor que a de HB, e nosso histórico na meca do mercado do surf mundial sempre foi avassalador.

Mas tempos difíceis são sempre uma ótima janela para as melhores surpresas. Estava eu imerso no ofício do texto quando salpicou em minha caixa de entrada um e-mail do amigo Bráulio, uma imagem que circulou na cobertura do US Open.

Abri no automático, para desopilar a mente, imaginando ser uma foto de Taj Burrow socando mais uma vez a prancha após a 547ª derrota para seu maior algoz, quando uma imagem me desarmou. Nenhuma imagem de surfista seria mais esperada que aquela.

Mas o que eu vi foi Kelly Slater segurando o bebê Andrew Axel Irons, filho do único surfista que, um dia, lhe impôs uma dura derrota psicológica. Andy Irons morreu ano passado, mas deixou um legado muito maior que seus títulos e seu surf: deixou Andrew.

A foto, que vale pelo simbolismo, mostra um garoto olhando fixamente nos olhos de Kelly, como se dissesse: nasceu mais surfista um que não teme campeões mundiais. E Kelly, com a cabeça ligeiramente curvada para trás, parece observar admirado o filho de seu grande rival.

Um instantâneo talvez seja insuficiente para saber o que realmente passou na cabeça do americano ao segurar Andrew Axel no colo. A imagem veio em boa hora, porque Kelly andava tropeçando em atitudes e palavras, sem esconder algumas práticas egocêntricas e, algumas vezes, declarações inoportunamente direcionadas.

No Brasil, ignorou os apelos para que saísse da água e entregasse a camiseta depois de ser derrotado por Bobby Martinez. Mostrou descaso com a ASP ao trocar a etapa de J-Bay por um punhado de ondas perfeitas em Fiji.

Outro dia, postou um texto na rede social reclamando de surfistas brasileiros, reproduzido por um colunista de jornal no Rio: “Surfo com pessoas do mundo inteiro. Tem alguma razão para os brasileiros sempre darem a volta em você dentro d´água? Isso prejudica o surfe de todo mundo.”

A declaração irritou especialmente por ter sido dada num ano de novas janelas e conquistas inéditas para os surfistas brasileiros. Kelly não toma volta de brasileiro. Não toma volta de ninguém. Pelo contrário, o cara é venerado em qualquer line-up do mundo.

Outro dia, numa matéria para preencher o espaço da transmissão ao vivo de um evento, um repórter perguntou a alguns surfistas quem era o top que mais incomodava, impregnava, forçava a barra dentro d´água. Adivinhe qual foi a resposta do americano?

Você acertou se marcou Adriano de Souza.

Por tudo isso, ver Kelly segurando o filho de seu velho algoz no colo não tem preço. É a imagem de um campeão mais humano, menos Maquiavel, que muitos querem voltar a ver. Deveria ser muito mais reproduzida nas revistas e jornais que os instantâneos de aéreos insanos que lhe renderam merecidamente o maior troféu de Huntington Beach.

Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.