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terça-feira, 13 de setembro de 2011

O SURFISTA MITOLÓGICO

Num dia qualquer de 1820, na Ilha de Milo, na Grécia, um camponês deu de cara com uma velha estátua quebrada em dois pedaços e sem braços. Quando voltou à vila com aquele monte de mármore esculpido, ninguém deu muita bola, a não ser um marinheiro francês mais observador, Olivier Voutier. Ele tanto insistiu que convenceu seu superior a comprar a sucata do nativo por meia dúzia de cabras.

Quando desembarcaram em Paris, os restos da estátua foram parar no Louvre. No velho museu, ela foi remontada, estudada e datada. A escultura abandonada era Vênus de Milo, de 130 A.C., primorosa obra que representa a deusa grega Afrodite, da beleza e do amor.

Voutier havia identificado nos restos de uma estátua partida um modelo de beleza construído pelos gregos que vale até hoje. O marinheiro julgou a estátua valiosa porque o padrão estético daquela deusa já estava incorporado em seu DNA e no de toda a cultura ocidental.

Pode parecer loucura de artista, mas o surfe – assim como a escultura da deusa Afrodite – é uma expressão estética. E, como tal, depende do nosso julgamento. Noves fora todas as tentativas válidas de dar critérios objetivos ao esporte, a beleza às vezes vence.

Tom Curren, que desenha curvas tão sedutoras quanto as de Oscar Niemeyer, foi tricampeão mundial. Gostem ou não, Mark Richards surfou com a leveza de uma gaivota para vencer quatro vezes. Já Fábio Gouveia trouxe ao surfe um estilo sereno com arcos desenhados sem pressa. Encantou, mas não ganhou. Assim como Joel Parkinson, hoje o maior representante das linhas belas, que por um desses acasos do cruel mundo competitivo ainda não chegou lá.

Outras vezes, os novos padrões do esporte foram definidos com vitórias. Com dez títulos, Kelly Slater será um modelo do surfe perfeito enquanto estiver vivo. Mick Fanning ganhou status de paradigma com o segundo triunfo. Taj Burrow, pelo modo como passeia pela onda, entrou para o grupo de modelos a serem seguidos. A grita mais comum é que esses caras são “bem julgados”, são os “queridinhos da ASP”. Não é isso. Eles viraram o padrão do que é bom.

Tem quem diga que, em uma ou duas situações, a entidade escolheu seu modelo antes mesmo de os surfistas entrarem na água. Um dos eleitos da ASP teria sido Sunny Garcia, em 2000, numa reverência aos havaianos. Mas mesmo ali havia uma beleza: apesar do estilo pouco polido, o cara atraía os juízes pela violência com que atacava lips de todos os tipos de onda.

Diante da expressão estética, critérios de julgamento se tornam apenas um norte frágil, como o equilíbrio de um acrobata sobre uma corda bamba. Juízes de surfe são como o marinheiro francês, que em pleno Mar Egeu se encantou pela Vênus de Milo. São como todos nós.

O tempo passou, mas a poesia do surfe parece não ter perdido força nem mesmo no ano de redenção dos donos de “manobras progressivas e inovadoras”, como diz o critério da ASP. Um garoto americano que nunca ganhou nada na elite, tímido fora d´água, desponta como o novo padrão de surfista do futuro, como o modelo mais bem acabado de surfe elegante, com arcos sem quebras e manobras extremamente modernas, sem ter abandonado o velho carving.

Dane Reynolds é o eleito. Talvez seja um dos surfistas sem vitória mais bem avaliados da história da ASP. Tornou-se um modelo por executar, dentro d´água, tudo aquilo o que a entidade deseja na nova ordem do esporte. Não é balela. Pegue o novo critério de julgamento, vasculhe-o, revire-o do avesso: não adianta, você vai enxergar Dane. Se fosse eu a escolher um novo surfista-padrão, um dono para as notas dez, não seria diferente.

Voutier admirou prontamente Vênus porque a beleza daquela escultura encontrada na Ilha de Milo lhe pareceu familiar. Ele estava certo. Lá atrás, aquela deusa da mitologia grega ajudou a definir padrões estéticos universais. Assim é no surfe, cujos diversos padrões criados na história da ASP também influenciaram indistintamente várias gerações. Dane é admirado porque seu surfe é o resultado sutil e bem-sucedido de uma soma de técnicas e estilos que prevaleceram ao longo da história do esporte, combinada a um novo talento.

Fosse o surfe exposto no Louvre, Dane seria obra valiosa sem precisar entrar na água. Mas, por mais consistente que seja a obra, no mundo real, há um abismo chamado competição entre o surfista e o sucesso. Lá, muitas vezes prevalece o imprevisível humor da onda e, claro, um adversário competente. Até porque, quando menos se espera, um anônimo tão ignorado quanto o desconhecido autor da definitiva escultura grega de Afrodite esculpe uma obra de arte absolutamente original na onda e encanta o mundo.

* Publicada na revista Fluir em 2010.

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